Lucas Marcomini | Alfa Collab | agosto-setembro 2022
A narrativa da disrupção dos grandes bancos pelas mudanças tecnológicas cada vez mais rápidas já chega pelo menos à sua terceira década, sem muitos resultados.
Existem muitos motivos para isso, e vou mencionar sem muitos detalhes alguns desses pontos neste texto, mas o tema principal será o mais recente assassino dos grandes bancos, a disrupção mãe, o fim da concentração bancária: o Open Finance.
Uma definição possível de Open Finance é a abertura dos dados, produtos e serviços financeiros para terceiros, através de interfaces de comunicação tecnológica seguras. O compartilhamento desses dados, produtos e serviços deve ser sempre baseado na autorização do cliente. Cada mercado possui suas particularidades, como escopo de dados, produtos e serviços compartilhados, se há uma organização do sistema por parte de algum órgão regulador, quem são os participantes etc.
No Brasil o Open Finance, que começou como Open Banking, é um esforço regulatório capitaneado pelo Banco Central do Brasil, que possui um grande histórico de inovações tecnológicas que tornaram o sistema financeiro brasileiro reconhecido globalmente como um dos mais inovadores e modernos do mundo.
O Banco Central foi ousado, e apresentou um escopo grande, o mais amplo do mundo na época, e com um cronograma de implementação extremamente arrojado. Como veremos mais a frente, essa opção tomada pelo Banco Central possui pontos positivos e negativos.
A regulação brasileira deu os princípios básicos do Open Finance e definiu que os participantes deveriam ser instituições financeiras reguladas pelo Banco Central, com critérios de participação para cada fase. Os detalhes da implementação e execução do Open Finance ficariam a cargo de uma estrutura de governança formada pelos participantes do mercado, que definiriam as especificações técnicas e operacionalização do sistema.
Ok, mas qual o objetivo de tudo isso? A lógica por trás da abertura do sistema financeiro é permitir que novos entrantes no mercado possam acessar as informações dos clientes que hoje estão lacradas a sete chaves dentro dos grandes bancos. Estes, concentram por volta de 80% do crédito do país e possuem longos relacionamentos com seus clientes, que tratam ao menos um deles como seu banco principal, deixando informações valiosas dentro da instituição. Todo seu padrão de consumo, histórico de renda e gastos, um conjunto de dados que deixa até as big techs com inveja.
Ao ter que compartilhar esses dados os grandes bancos perderiam a enorme vantagem competitiva de possui-los, e seriam forçados a competir com mais players em preço, experiência e entrega de valor aos seus clientes. Dado o histórico não muito favorável dos grandes bancos nesses quesitos o Open Finance é, obviamente, considerado uma das maiores ameaças já enfrentadas por essas instituições. As fintechs iriam acelerar ainda mais seu crescimento e logo dominariam o mercado. Mas nem tudo é tão óbvio e simples assim.
Mais acostumados às mudanças tecnológicas do que se imagina (o setor financeiro é o setor que mais investe em inovação no Brasil, perdendo apenas para o governo) e com um volume enorme de recursos disponíveis os bancos tiveram que escolher entre aceitar a derrota ou enxergar, dentro do possível, uma oportunidade. Ao terem sua participação definida como obrigatória os bancos decidiram jogar o jogo, como sempre fizeram.
Os bancos também já possuíam a expertise de como usar os dados de toda a vida financeira do cliente em seus modelos de crédito e oferta de produtos. Dados que as fintechs nunca acessaram e ainda precisam aprender a modelar e entender para gerarem novos negócios. É uma grande curva de aprendizado.
Em um cenário onde o Banco Central optou por um escopo grandioso e um cronograma apertado a capacidade de investimento dos bancos e o tamanho de suas equipes permitiram que essas instituições pulassem na frente das grandes e pequenas fintechs em termos de soluções oferecidas aos clientes. O Open Finance não é simples de ser implementado, e apesar de terem que lidar com estruturas legado gigantescas os bancos possuem recursos suficientes para executar as diversas frentes do Open Finance em paralelo, trabalhando compliance regulatório e geração de negócios ao mesmo tempo. Enquanto isso empresas menores se viram obrigadas a escolher quais frentes atacar, e não há como escolher algo diferente do compliance regulatório.
Uma outra característica do Open Finance brasileiro é o fato de que apenas instituições financeiras podem ser participantes diretos do sistema. Essa característica deriva do limite de autoridade reguladora do Banco Central, que não possui mandato sobre outros tipos de companhias. Apesar de trazer mais segurança e a proximidade de um regulador forte e independente, essa característica limita o potencial e velocidade de adoção do Open Finance pelo consumidor. Fintechs que possuem licenças de Instituição Financeira precisam lidar com um novo e grande escopo regulatório, novamente pressionando seus recursos disponíveis (o atual mercado de venture capital não vai ajudar).
Startups de tecnologia, que foram grandes aceleradores do Open Banking no Reino Unido através de modelos de participação simplificados, somente podem ser participantes do sistema ao requisitarem ao Banco Central uma licença de instituição financeira, o que novamente limita a velocidade de produção de soluções por esses players ao aumentar o custo regulatório.
Por outro lado, a estratégia do Banco Central acertou no modelo de participação das grandes instituições financeiras, que são obrigadas a entrar no sistema. Ao colocar os bancos nesse cenário o Banco Central criou os incentivos para que os incumbentes buscassem acelerar seus esforços. Isso levou a grandes investimentos em marketing por parte dessas instituições, que levaram o tema ao horário nobre da televisão, grandes veículos de comunicação e redes sociais. A normalização do Open Finance como algo corriqueiro na vida das pessoas demanda um grande esforço, muito maior do que no caso do Pix, e todo o mercado (inclusive as fintechs menores) irá colher os frutos desse investimento.
Hoje os principais casos de uso de dados de Open Finance estão nos grandes bancos, com Banco do Brasil, Bradesco e BTG oferecendo agregação de contas e gestão financeira a seus clientes. Um serviço anteriormente dominado por fintechs, que hoje ou estão estagnadas ou saíram do mercado. A maior parte das soluções das fintechs estão na Iniciação de Pagamentos, e ainda com casos de uso bastante limitados. Mais recentemente o Banco do Brasil passou a oferecer a possibilidade do cliente dar o consentimento para o compartilhamento de dados através do WhatsApp, sendo a primeira instituição no mundo a trazer essa solução.
Os bancos sabem da necessidade de mudança e adaptação, e também sabem a dificuldade de realizar essa transformação totalmente dentro de casa. Existe um movimento claro do setor de geração de negócios com fintechs e outras startups. Seja através de parcerias, venture capital ou aquisições de fato, hoje os bancos estão executando fortes estratégias de negócios mais abertas, com visão de ecossistema. Essas parcerias passam a ser ainda mais importantes em um momento macroeconômico turbulento.
Sempre que há uma grande mudança a tendência é superestimarmos a velocidade e o impacto no curto prazo e subestimá-las no longo prazo. O Open Finance irá trazer grandes mudanças sobre como nos relacionamos com as instituições financeiras no futuro, mas, talvez, não seja da maneira que as análises mais simplistas indicaram.
Até logo.
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Este artigo foi primeiramente publicado no blog do autor, o Lucas’ Newsletter em 10 de agosto de 2022